O
desenvolvimento das cidades, via de regra, é uma consequência de seu
desenvolvimento econômico e, de igual modo, aquele não vem, na maioria das
vezes, precedido de um adequado aproveitamento do solo, resultando em uma
urbanização desordenada, com reflexos sociais e ambientais e, ironicamente,
econômicos.
Um
dos fatores de suma importância que contribuiu sobremaneira para este cenário
foi a ausência de uma normatização eficaz que conferisse aos Municípios meios
efetivos de controle dos processos de parcelamento do solo urbano.
Com
o advento da Constituição Federal de 1988 houve uma mudança significativa no
que se refere à conceituação do direito de propriedade e, uma preocupação do
Poder Constituinte em estabelecer normas atinentes à política urbana.
Nesse
sentido, destacamos o contido no art. 5º, inciso XXIII, da CF/88, “verbis”:
“Art. 5º. Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
(...)
XXIII - a propriedade
atenderá a sua função social;”
E, adiante, o art.
182 “caput” e seus §§1º e 2º, da Carta Maior, assim preceitua, “verbis”:
“Art. 182. A política de
desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus
habitantes.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para
cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.”
Da análise dos
citados dispositivos legais forçoso reconhecer que o direito de propriedade
está incluso no rol dos direitos e garantias individuais e coletivos.
Entretanto, a este direito não se pode atribuir o caráter absoluto, intocável.
Isto pois, “a propriedade não se constitui uma
instituição única, como no Estado Liberal, mas sim um conjunto de várias instituições distintas, relacionadas a diversos
tipos de bens."[1] (negritamos)
Em sendo assim,
o
princípio da função social integra o direito de propriedade, não
podendo ser visto como uma restrição ao sobredito direito. Em última análise
aquele constitui o próprio fundamento do regime jurídico da propriedade.
Norte
outro, a atividade urbanística, consoante o mencionado nos dispositivos
constitucionais em foco, é inerente ao Poder Público, que tem por fito o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade, tais como, habitação,
circulação, lazer e trabalho, dentre outras.
Por sua vez, o
direito
de construir vem disciplinado no art. 1.299 do Código Civil, que
assim preceitua, “verbis”: “O proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe
aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os
regulamentos administrativos.” (negritamos)
Todavia,
convém destacar que, este direito deve observar o planejamento urbanístico
disciplinado pelo Poder Público – Plano Diretor, como mencionado no dispositivo
legal acima.
E, da
compreensão do direito de construir surge o instituto do solo criado, também
conhecido como outorga onerosa do direito de construir, que pode ser
conceituado como sendo uma faculdade do proprietário de edificar em uma área
horizontal (terreno) sobre ou sob o solo natural, acima de um coeficiente
único de aproveitamento, fixado pelo Poder Púbico.
Como já
mencionado, a regulamentação do solo urbano é realizado por determinados
instrumentos, dentre eles, as restrições ao exercício da atividade
construtiva, mencionadas nas legislações de zoneamento, sendo certo
que, o coeficiente de aproveitamento é um destes.
Oportuno
transcrevermos o disposto no art. 28 e seus parágrafos, da Lei nº
10.257/2001, Estatuto da Cidade, que assim dispõem, “verbis”:
“Art. 28. O plano diretor
poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima
do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser
prestada pelo beneficiário.
§ 1o. Para os efeitos desta Lei, coeficiente de aproveitamento é a relação
entre a área edificável e a área do terreno.
§ 2o. O plano diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único
para toda a zona urbana ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona
urbana.
§ 3o. O plano diretor definirá os
limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento,
considerando a proporcionalidade entre a infra-estrutura existente e o aumento
de densidade esperado em cada área.”(negritamos)
O coeficiente
de aproveitamento expressa a relação entre a área construída e a área total do
terreno em que se situa a edificação. O Município, dentro de seu Plano
Diretor, pode determinar a aplicação de um coeficiente único de aproveitamento,
ou, índices de aproveitamento maiores ou menores, em determinadas regiões ou
bairros, por motivos de urbanismo.
Como visto,
trata-se de verdadeira limitação administrativa imposta ao proprietário em prol
do bem comum, atentando-se às necessidades urbanísticas. O doutrinador Toshio
Mukai, ao lecionar sobre o tema, ensina-nos que, “verbis”: “Por essa razão, conceituamos as
limitações urbanísticas como imposições, de direito público à propriedade, com
caráter de generalidade, que importam obrigações de não fazer ou de fazer, e
trazem, como critério legislativo, a razoabilidade, podendo, ou não, ser
indenizáveis.”[2]
Sendo assim, da
leitura do contido no art. 28 do Estatuto da Cidade,
tem-se que existe uma separação entre o direito de construir e o direito de
propriedade, na medida em que o solo criado (outorga onerosa do direito de
construir) é derivado desta separação.
Os doutrinadores
Evangelina Pinho e Fernando Guilherme Bruno Filho, sobre o tema ensinam que, “verbis”:
“Ora, o Estatuto da Cidade prevê o exercício oneroso do direito de
construir acima de um determinado coeficiente de aproveitamento básico, daí se
depreende que o exercício do direito de construir abaixo daquele patamar básico
é de exercício não oneroso, estando compreendido na esfera do direito privado
de propriedade.
Desta forma, diferentemente da Itália – onde há a separação total dos
dois direitos e o exercício do direito de construir somente é possível de forma
onerosa, verifica-se que, no Brasil, uma parcela do direito de construir integra
o direito individual sobre a propriedade urbana, ainda que sujeito às
limitações urbanísticas de parcelamento, uso e ocupação do solo impostas pela
legislação municipal.”[3]
Exemplificando,
para melhor compreendermos, imaginemos que em uma cidade do interior mineiro o
coeficiente único de aproveitamento é igual a 1 (§1º do art. 28 do Estatuto da
Cidade). João de Deus é proprietário de um terreno de 250 metros
quadrados, em um bairro em que o coeficiente de aproveitamento específico seja
2 (§2º
do art. 28 do Estatuto da Cidade).
Deste
modo, considerando o coeficiente único de aproveitamento, João de Deus poderá
construir – em decorrência do seu direito de propriedade – até 250 metros
quadrados. Entretanto, caso queira construir além desse limite seria necessário
adquirir o direito ao solo criado, estando este limitado a mais 250 metros
quadrados de construção, posto que o coeficiente de aproveitamento específico
do bairro é 2.
Note-se que,
esta aquisição poderia ocorrer de um outro proprietário cujo terreno esteja
localizado em uma área de preservação ambiental, razão pela qual seu direito de
construir esteja limitado.
E, a este negócio
jurídico, tem-se a transferência do direito de construir, que vem descrito no art.
35, incisos I a III e parágrafos 1º e 2º, do Estatuto da Cidade, com a
seguinte redação, “verbis”:
“Art. 35. Lei municipal,
baseada no plano diretor, poderá autorizar o proprietário de imóvel urbano,
privado ou público, a exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura
pública, o direito de construir previsto no plano diretor ou em legislação
urbanística dele decorrente, quando o referido imóvel for considerado
necessário para fins de:
I – implantação de equipamentos
urbanos e comunitários;
II – preservação, quando o
imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social
ou cultural;
III – servir a programas de
regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa
renda e habitação de interesse social.
§ 1o. A mesma faculdade poderá ser
concedida ao proprietário que doar ao Poder Público seu imóvel, ou parte dele,
para os fins previstos nos incisos I a III do caput.
§ 2o. A lei municipal referida no
caput estabelecerá as condições relativas à aplicação da transferência do
direito de construir.” (negritamos)
Como visto, ao
proprietário que tenha restringido o seu direito de construir, porquanto seu
imóvel foi considerado necessário para preservação ambiental, inciso II do
dispositivo legal em comento, será facultada a transferência de seu direito de
construir para outro imóvel de sua propriedade, ou ainda, aliená-lo para
terceiros, mediante escritura pública, sendo pois, uma forma de compensá-lo
pela restrição imposta.
Em
sendo assim, a transferência do direito de construir revela-se como uma medida
compensatória de política urbana, devendo, por óbvio, serem observados os
coeficientes de aproveitamento tanto do imóvel que recebe, quanto do imóvel que
transfere o potencial construtivo, “ex vi”
do disposto no art. 28, §§ 1º e 2º, do Estatuto da Cidade.
Registre-se,
por fim, que a transferência do direito de construir concretiza o princípio
da justa distribuição do ônus e benefícios da urbanização, porquanto a
sua instituição visa, dentre outros motivos, o uso da propriedade urbana em
prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, como ainda do
equilíbrio ambiental.
[1] - Silva, José Afonso
da, Direito Urbanístico Brasileiro, 2ª ed. Revisada e ampliada, São Paulo:
Malheiros Editores, 1995:64.
[2] - Direito Urbano
Ambiental Brasileiro. 2ª edição. Editora Dialética. São Paulo: 2002, pg. 286.
[3] - Estatuto da Cidade.
Editora Mandamentos. Belo Horizonte: 2002, pg. 209.
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