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terça-feira, 4 de setembro de 2012

DO CONTRATO DE SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS - EXECUTIVIDADE - ANTINOMIAS DE NORMAS


                                   O processo executivo na lição do ilustre doutrinador José Frederico Marques é entendido como sendo “um conjunto de atos processualmente aglutinados, que se destinam a fazer cumprir, coativamente, prestação a que a lei concede pronta e imediata exigibilidade.”[1]

                                   Em sendo assim, pode-se afirmar que o objetivo do processo executivo é tornar efetiva uma prestação, independente da vontade do devedor, porquanto exigível, porém não satisfeita. Isto é, o devedor não cumpriu de forma espontânea uma obrigação líquida, certa e exigível, reconhecida em um título executivo, judicial ou extrajudicial, razão pela qual o credor pugna pelo seu cumprimento, de forma coativa, por meio do processo de execução.

                                   Desta forma, tem-se como pressupostos específicos do processo de execução a existência de um título executivo, judicial ou extrajudicial e o inadimplemento do devedor. O art. 580 do Código de Processo Civil, em sua redação atual, assim dispõe, “verbis”: A execução pode ser instaurada caso o devedor não satisfaça a obrigação certa, líquida e exigível, consubstanciada em título executivo.”.

                                   Não será ocioso mencionar que, o processo de execução está subordinado aos pressupostos processuais de toda e qualquer relação jurídica processual, para que ocorra o seu desenvolvimento válido, como previsto no art. 267, inciso IV, do Código de Processo Civil.

                                   Como visto, o título executivo é o fundamento da pretensão do credor, em exigir o cumprimento da prestação naquele contida, desde que certa, líquida e exigível. Nesse sentido é o disposto no art. 586, “caput”, do CPC, “verbis”: A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível.”.

                                   Sobre os atributos do título executivo, novamente, oportuna o ensinamento do já citado doutrinador José Frederico Marques, “verbis”:

“Isto significa, em primeiro lugar, que a prestação típica, ou prestação que a lei indica, tem de ser determinada quanto ao valor e respectivo objeto, isto é, prestação líquida.

(...)

Por outro lado, deve o título ser certo, isto é, conter prestação típica no conteúdo e na forma, porquanto a tipicidade é que imprime, à prestação, a certeza abstrata de sua existência, no plano processual.

(...)

Na realidade, a liquidez do título também lhe integra os elementos típicos. Todavia, como existe indicação de prestações em forma genérica, a regra do art. 586, caput, se destina, no tocante à liquidez, a apontar requisitos indeclinável do tipo, que deve, por isso, integrar toda prestação típica como um de seus co-elementos constitutivos. Assim sendo, título líquido e certo é toda prestação típica a que inerente a força executiva.”[2]

                                   Ocorre que, o título executivo decorre de disposição expressa de lei, sendo esta a responsável por indicar qual a prestação e, quais os requisitos formais que devem integrar aquele. Isto é, a lei prescreve a prestação, bem como os requisitos que devem estar presentes no instrumento, para qualificá-lo como título executivo passível de embasar o processo de execução.

                                   No presente estudo importa-nos a análise dos títulos executivos extrajudiciais, especificamente, se os contratos de seguro de acidentes pessoais constituem títulos executivos extrajudiciais, em face da nova redação conferida ao art. 585, inciso III, do CPC, ante o advento da Lei Federal nº  11.382/06.

                                   O art. 585, inciso III, do CPC, possuía a seguinte redação, antes do advento da Lei Federal nº 11.382/06, “verbis”:

Art. 585. São títulos executivos extrajudiciais:

(...)

III – os contratos garantidos, por hipoteca, penhor, anticrese e caução, bem como os de seguro de vida e de acidentes pessoais de que resulte morte ou incapacidade.”

                                   Entretanto, a partir da vigência da Lei Federal nº 11.382/06, o dispositivo em comento passou a ter a seguinte redação, “verbis”:

Art. 585. São títulos executivos extrajudiciais:

(...)

III – os contratos garantidos, por hipoteca, penhor, anticrese e caução, bem como os de seguro de vida.”

                                   Como visto, os contratos de seguro de acidentes pessoais de que resulte morte ou incapacidade, pela nova redação do art. 585, inciso III, do CPC, deixaram de estarem incursos como títulos executivos extrajudiciais.

                                   Nesse sentido é o entendimento do doutrinador Marcelo Abelha, ao asseverar que, “verbis”: “Nesse particular, o Código de Processo Civil procurou simplificar a execução desses tipos de contrato. Na prática, para que houvesse a execução de contratos de seguro contra acidentes pessoais de que resultasse incapacidade, em geral existia uma batalha prévia com enorme discussão subjetiva sobre a "ocorrência da incapacidade" do segurado. Agora, optou-se por deixar só a morte, cujo fato é objetivo, para evitar a polêmica outrora.”.

                                   O E. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais prestando a jurisdição, em caso análogo ao presente estudo, assim já decidiu, vejamos:

“Seguro de vida em grupo - contrato de seguro - título executivo extrajudicial - lei 11.382/06. Após a entrada em vigor da Lei 11.382/06, não é mais possível a execução de apólice de seguro pela ocorrência de um acidente pessoal de que resulte incapacidade, pois tal contrato não mais consiste em um título executivo extrajudicial, o que obriga o credor à utilização das vias ordinárias.”[3]

                                   Ocorre que, não obstante a alteração do art. 585, inciso III, do CPC, pela Lei Federal nº 11.382/06, existe parte da doutrina e jurisprudência que têm admitido a executividade do contrato de seguro de acidentes pessoais, com fundamento no disposto no art. 27 do Decreto-lei nº 73/66[4] e art. 777 do Código Civil, como passaremos a demonstrar.

                                   O art. 27 do Decreto-lei nº 73/66 assim preceitua, “verbis”: “Serão processadas pela forma executiva as ações de cobrança dos prêmios dos contratos de seguro.”.

                                   Por sua vez, o art. 777 do Código Civil menciona que, “verbis”: “O disposto no presente Capítulo aplica-se, no que couber, aos seguros regidos por leis próprias.”.

                                   Importa mencionar que, o art. 777 do CC, acima mencionado, está disposto na Seção I – Das Disposições Gerais, do Capítulo XV – Do Seguro.

                                   Assim, para parte da doutrina, respaldada em alguns julgados nesse sentido, a alteração legislativa não afastou a possibilidade de execução dos contratos de seguro de acidentes pessoais, na medida em que a sua força executiva decorre do contido no art. 27, do Decreto-lei nº 73/66 c/c o art. 777 do CC.

                                   Este, aliás, é o entendimento do doutrinador Fredie Didier Júnior, “verbis”:

"Diante da modificação, passou-se a entender que, para o seguro de acidentes pessoais, obrigatório ou facultativo, independentemente da extensão ou gravidade do dano, não é mais cabível a ação de execução, mas a ação de cobrança pelo rito sumário, quando envolver veículos (CPC, art. 275, II, e).

Não parece, contudo, que a mudança legislativa tenha tido o condão de subtrair do elenco de títulos executivos extrajudiciais o contrato de acidentes pessoais de que resulte incapacidade ou morte. Isso porque, todo e qualquer tipo de seguro pode ser cobrado por ação de execução, em virtude da previsão contida no art. 27 do Decreto-lei n. 73/1966, que assim dispõe: 'Serão processadas pela forma executiva as ações de cobrança dos prêmios dos contratos de seguro', regra essa incorporada pelo art. 777 do Código Civil de 2002. O dispositivo alude a seguro de vida, sem se referir ao risco cuja ocorrência irá acarretar a pretensão executória. Não havendo qualquer restrição, é forçoso admitir que qualquer contrato de seguro pessoal pode ser título executivo extrajudicial, seja no caso de morte, seja no caso de incapacidade. Trata-se de um tipo legal aberto, abrangendo vários contratos de seguro de vida.

Significa que restou inócua a mudança legislativa, pois, conforme esclarece RODRIGO MAZZEI, 'tanto o seguro de vida como o de acidente pessoal são espécies do seguro de pessoa, nos termos da leitura do contexto dos arts. 789-802 do CC. Pelas peculiaridades do seguro de pessoa, todas as proteções ao segurado devem ser conferidas, razão pela qual, em exemplo, o art. 795 do CC prevê que no seguro de pessoa - sem fazer distinção entre seguro de vida ou por incapacidade - é vedada qualquer transação para pagamento reduzido do capital segurado. Observe-se que o atual dispositivo fala em seguro de vida, nada aduzindo acerca de necessidade da morte do segurado, diferentemente da parte revogada em que o legislador fazia a discriminação de que o seguro de vida somente seria título em caso de morte. Dessa forma, sem a restrição anteriormente efetuada, caso o segurado tenha seguro de vida e não venha a falecer, mas venha a ficar incapaz, terá este direito ao seguro? Como se vê, a redação do inciso III do art. 585 não é feliz, sendo necessária exegese mais complexa que a leitura literal do dispositivo. Parece-nos descartável (e odiosa) a interpretação restritiva do dispositivo ao argumento de que a incapacidade poderá demandar perícia médica e, como tal, haverá iliquidez no título. Tal linha de raciocínio é falseada a partir da leitura da própria Lei 11.382/2006 já que, no art. 745, IV, §§ 1º e 2º, o legislador permitiu a propositura de execução em que poderá ser necessária a feitura de perícia para se alcançar o (real) crédito do exequente, apurando-se, mediante liquidação. Não há justificativa de tratamento desigual nas relações jurídicas materiais, até mesmo porque a perícia para aferição da incapacidade causada por acidente não alcança alta complexidade, sendo na maioria das vezes muito mais simples que a aferição dos créditos e débitos nos embargos de retenção, em especial quando o caráter de boa-fé do possuidor for alterado no curso da relação, nos termos do art. 1.202 do CC'."[5] (negritamos)

                                   Não obstante valiosa e pertinente a interpretação conferida pela doutrina, no sentido da manutenção da executividade dos contratos de seguro de acidentes pessoais, com fundamento no contido no art. 27 do Decreto-lei nº 73/66 c/c art. 777 do CC, a questão se nos afigura de uma antinomia de segundo grau, o que enseja a análise sob o prisma de sua resolução, mediante os critérios existentes.  

                                   Por antinomia jurídica a doutrina a tem conceituado como sendo a oposição que ocorre entre duas ou mais normas, que são total ou parcialmente contraditórias, emanadas de autoridades competentes em um mesmo âmbito normativo.

                                   Os critérios de solução das antinomias são o hierárquico – a norma superior revoga a inferior -, o cronológico – a norma posterior revoga a anterior – e, o da especialidade – a norma especial revoga a geral.

                                   “In casu”, temos uma antinomia de segundo grau, ou seja, existe um conflito de normas que envolvem os três critérios de solução. Isto pois, a Lei Federal nº 11.382/66 (lei complementar) é hierarquicamente superior ao Decreto-lei nº 73/66. Entretanto, este é um plexo normativo de caráter especial em relação àquela.

                                   Ademais, a Lei Federal nº 11.382/66 é norma posterior ao Decreto-lei nº 73/66, sendo ainda oportuno mencionar que aquela é norma posterior à Lei Complementar nº 10.406/02 (Código Civil).

                                   Partilhamos do entendimento de que, “in casu”, a antinomia de segundo grau, o critério hierárquico deve prevalecer, na medida em que é o critério adotado na Lei de Introdução ao Código Civil, “ex vi” do disposto no art. 2º, §1º, que assim dispõe, “verbis”:

Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.”(negritamos)

                                   Com efeito, a Lei Federal nº 11.382/66 (lei complementar) ao suprimir do art. 585, inciso III, do CPC, a expressão “e de acidentes pessoais de que resulte morte ou incapacidade”, retirou a executividade destes contratos, revogando, de forma tácita, o disposto no art. 27 do Decreto-lei nº 73/66, prevalecendo o critério hierárquico sobre o da especialidade, sendo importante ressaltar que, a solução adotada, no presente estudo, trata-se de uma interpretação feita, pelo confronto entre os critérios hierárquico e o da especialidade, havendo, na doutrina, entendimentos contrários, dada a peculiaridade do conflito entre estes critérios.



[1] - Manual de Direito Processual Civil. Vol. IV, Processo de Execução. Processo Cautelar – Parte Geral. Saraiva: São Paulo, 1976, pg. 01.
[2] - obra citada, pg. 27.
[3] - TJMG, Apelação Cível n. 1.0145.07.411770-9/001, Relator Desembargador José Affonso da Costa Côrtes, publicado em 02.06.2009.
[4] - O Decreto-lei nº 73/66 dispõe sobre o Sistema Nacional de Seguros Privados, regula as operações de seguros e reseguros e dá outras providências.
[5] - Curso de Direito Processual Civil, volume 5, Execução, 3ª Ed.., Salvador: JusPodivm, 2011 p. 186/187.