O
processo executivo na lição do ilustre doutrinador José Frederico Marques é
entendido como sendo “um conjunto de atos processualmente aglutinados, que se destinam a
fazer cumprir, coativamente, prestação a que a lei concede pronta e imediata exigibilidade.”[1]
Em
sendo assim, pode-se afirmar que o objetivo do processo executivo é tornar
efetiva uma prestação, independente da vontade do devedor, porquanto exigível,
porém não satisfeita. Isto é, o devedor não cumpriu de forma espontânea uma obrigação
líquida, certa e exigível, reconhecida em um título executivo, judicial ou
extrajudicial, razão pela qual o credor pugna pelo seu cumprimento, de forma
coativa, por meio do processo de execução.
Desta
forma, tem-se como pressupostos específicos do processo de execução a
existência de um título executivo, judicial ou extrajudicial e o inadimplemento
do devedor. O art. 580 do Código de Processo Civil, em sua redação atual,
assim dispõe, “verbis”: “A execução pode ser instaurada caso o devedor não satisfaça a obrigação
certa, líquida e exigível, consubstanciada em título executivo.”.
Não
será ocioso mencionar que, o processo de execução está subordinado aos
pressupostos processuais de toda e qualquer relação jurídica processual, para
que ocorra o seu desenvolvimento válido, como previsto no art. 267, inciso IV, do Código de
Processo Civil.
Como
visto, o título executivo é o fundamento da pretensão do credor, em exigir o
cumprimento da prestação naquele contida, desde que certa, líquida e exigível.
Nesse sentido é o disposto no art. 586, “caput”, do CPC, “verbis”: “A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de
obrigação certa, líquida e exigível.”.
Sobre
os atributos do título executivo, novamente, oportuna o ensinamento do já
citado doutrinador José Frederico Marques, “verbis”:
“Isto
significa, em primeiro lugar, que a prestação típica, ou prestação que a lei
indica, tem de ser determinada quanto ao valor e respectivo objeto, isto é, prestação líquida.
(...)
Por outro
lado, deve o título ser certo, isto
é, conter prestação típica no conteúdo e na forma, porquanto a tipicidade é que
imprime, à prestação, a certeza abstrata de sua existência, no plano
processual.
(...)
Na
realidade, a liquidez do título também lhe integra os elementos típicos.
Todavia, como existe indicação de prestações em forma genérica, a regra do art.
586, caput, se destina, no tocante à
liquidez, a apontar requisitos indeclinável do tipo, que deve, por isso,
integrar toda prestação típica como um de seus co-elementos constitutivos.
Assim sendo, título líquido e certo é toda prestação típica a que inerente a
força executiva.”[2]
Ocorre que, o
título executivo decorre de disposição expressa de lei, sendo esta a
responsável por indicar qual a prestação e, quais os requisitos formais que
devem integrar aquele. Isto é, a lei prescreve a prestação, bem como os
requisitos que devem estar presentes no instrumento, para qualificá-lo como
título executivo passível de embasar o processo de execução.
No
presente estudo importa-nos a análise dos títulos executivos extrajudiciais,
especificamente, se os contratos de seguro de acidentes pessoais constituem
títulos executivos extrajudiciais, em face da nova redação conferida ao art.
585, inciso III, do CPC, ante o advento da Lei Federal nº 11.382/06.
O
art.
585, inciso III, do CPC, possuía a seguinte redação, antes do advento
da Lei
Federal nº 11.382/06, “verbis”:
“Art. 585. São títulos executivos
extrajudiciais:
(...)
III – os contratos garantidos, por hipoteca, penhor,
anticrese e caução, bem como os de seguro de vida e de acidentes pessoais de
que resulte morte ou incapacidade.”
Entretanto, a partir da vigência da
Lei
Federal nº 11.382/06, o dispositivo em comento passou a ter a seguinte
redação, “verbis”:
“Art. 585. São títulos executivos
extrajudiciais:
(...)
III – os contratos garantidos, por hipoteca, penhor,
anticrese e caução, bem como os de seguro de vida.”
Como visto, os contratos de seguro
de acidentes pessoais de que resulte morte ou incapacidade, pela nova redação
do art.
585, inciso III, do CPC, deixaram de estarem incursos como títulos
executivos extrajudiciais.
Nesse sentido é o entendimento do
doutrinador Marcelo Abelha, ao asseverar que, “verbis”: “Nesse particular, o Código de Processo Civil procurou simplificar a execução
desses tipos de contrato. Na prática, para que houvesse a execução de contratos
de seguro contra acidentes pessoais de que resultasse incapacidade, em geral
existia uma batalha prévia com enorme discussão subjetiva sobre a
"ocorrência da incapacidade" do segurado. Agora, optou-se por deixar
só a morte, cujo fato é objetivo, para evitar a polêmica outrora.”.
O E. Tribunal de Justiça do Estado
de Minas Gerais prestando a jurisdição, em caso análogo ao presente estudo,
assim já decidiu, vejamos:
“Seguro
de vida em grupo - contrato de seguro - título executivo extrajudicial - lei
11.382/06. Após a entrada em vigor da Lei 11.382/06, não é mais possível a
execução de apólice de seguro pela ocorrência de um acidente pessoal de que
resulte incapacidade, pois tal contrato não mais consiste em um título
executivo extrajudicial, o que obriga o credor à utilização das vias
ordinárias.”[3]
Ocorre que, não obstante a alteração
do art.
585, inciso III, do CPC, pela Lei Federal nº 11.382/06, existe
parte da doutrina e jurisprudência que têm admitido a executividade do contrato
de seguro de acidentes pessoais, com fundamento no disposto no art.
27 do Decreto-lei nº 73/66[4] e art.
777 do Código Civil, como passaremos a demonstrar.
O art. 27 do Decreto-lei nº 73/66
assim preceitua, “verbis”: “Serão processadas pela
forma executiva as ações de cobrança dos prêmios dos contratos de seguro.”.
Por sua vez, o art. 777 do Código Civil
menciona que, “verbis”: “O disposto no presente
Capítulo aplica-se, no que couber, aos seguros regidos por leis próprias.”.
Importa mencionar que, o art.
777 do CC, acima mencionado, está disposto na Seção I – Das Disposições
Gerais, do Capítulo XV – Do Seguro.
Assim, para parte da doutrina,
respaldada em alguns julgados nesse sentido, a alteração legislativa não
afastou a possibilidade de execução dos contratos de seguro de acidentes
pessoais, na medida em que a sua força executiva decorre do contido no art.
27, do Decreto-lei nº 73/66 c/c o art. 777 do CC.
Este, aliás, é o entendimento do
doutrinador Fredie Didier Júnior, “verbis”:
"Diante da
modificação, passou-se a entender que, para o seguro de acidentes pessoais,
obrigatório ou facultativo, independentemente da extensão ou gravidade do dano,
não é mais cabível a ação de execução, mas a ação de cobrança pelo rito
sumário, quando envolver veículos (CPC, art. 275, II, e).
Não parece, contudo, que a mudança legislativa tenha tido
o condão de subtrair do elenco de títulos executivos extrajudiciais o contrato
de acidentes pessoais de que resulte incapacidade ou morte. Isso porque, todo e
qualquer tipo de seguro pode ser cobrado por ação de execução, em virtude da
previsão contida no art. 27 do Decreto-lei n. 73/1966, que assim dispõe: 'Serão
processadas pela forma executiva as ações de cobrança dos prêmios dos contratos
de seguro', regra essa incorporada pelo art. 777 do Código Civil de 2002. O
dispositivo alude a seguro de vida, sem se referir ao risco cuja ocorrência irá
acarretar a pretensão executória. Não havendo qualquer restrição, é forçoso
admitir que qualquer contrato de seguro pessoal pode ser título executivo
extrajudicial, seja no caso de morte, seja no caso de incapacidade. Trata-se de
um tipo legal aberto, abrangendo vários contratos de seguro de vida.
Significa que restou
inócua a mudança legislativa, pois, conforme esclarece RODRIGO MAZZEI, 'tanto o
seguro de vida como o de acidente pessoal são espécies do seguro de pessoa, nos
termos da leitura do contexto dos arts. 789-802 do CC. Pelas peculiaridades do
seguro de pessoa, todas as proteções ao segurado devem ser conferidas, razão
pela qual, em exemplo, o art. 795 do CC prevê que no seguro de pessoa - sem
fazer distinção entre seguro de vida ou por incapacidade - é vedada qualquer
transação para pagamento reduzido do capital segurado. Observe-se que o atual
dispositivo fala em seguro de vida, nada aduzindo acerca de necessidade da
morte do segurado, diferentemente da parte revogada em que o legislador fazia a
discriminação de que o seguro de vida somente seria título em caso de morte.
Dessa forma, sem a restrição anteriormente efetuada, caso o segurado tenha
seguro de vida e não venha a falecer, mas venha a ficar incapaz, terá este
direito ao seguro? Como se vê, a redação do inciso III do art. 585 não é feliz,
sendo necessária exegese mais complexa que a leitura literal do dispositivo.
Parece-nos descartável (e odiosa) a interpretação restritiva do dispositivo ao
argumento de que a incapacidade poderá demandar perícia médica e, como tal,
haverá iliquidez no título. Tal linha de raciocínio é falseada a partir da
leitura da própria Lei 11.382/2006 já que, no art. 745, IV, §§ 1º e 2º, o
legislador permitiu a propositura de execução em que poderá ser necessária a
feitura de perícia para se alcançar o (real) crédito do exequente, apurando-se,
mediante liquidação. Não há justificativa de tratamento desigual nas relações
jurídicas materiais, até mesmo porque a perícia para aferição da incapacidade
causada por acidente não alcança alta complexidade, sendo na maioria das vezes
muito mais simples que a aferição dos créditos e débitos nos embargos de
retenção, em especial quando o caráter de boa-fé do possuidor for alterado no
curso da relação, nos termos do art. 1.202 do CC'."[5]
(negritamos)
Não obstante valiosa e pertinente a
interpretação conferida pela doutrina, no sentido da manutenção da
executividade dos contratos de seguro de acidentes pessoais, com fundamento no
contido no art. 27 do Decreto-lei nº 73/66 c/c art. 777 do CC, a questão
se nos afigura de uma antinomia de segundo grau, o que
enseja a análise sob o prisma de sua resolução, mediante os critérios
existentes.
Por antinomia jurídica a doutrina a
tem conceituado como sendo a oposição que ocorre entre duas ou mais normas, que
são total ou parcialmente contraditórias, emanadas de autoridades competentes
em um mesmo âmbito normativo.
Os critérios de solução das
antinomias são o hierárquico – a norma superior revoga a inferior -, o
cronológico – a norma posterior revoga a anterior – e, o da especialidade – a norma
especial revoga a geral.
“In
casu”, temos uma antinomia de segundo grau, ou seja, existe um conflito de
normas que envolvem os três critérios de solução. Isto pois, a Lei
Federal nº 11.382/66 (lei complementar) é hierarquicamente superior ao Decreto-lei
nº 73/66. Entretanto, este é um plexo normativo de caráter especial em
relação àquela.
Ademais, a Lei Federal nº 11.382/66
é norma posterior ao Decreto-lei nº 73/66, sendo ainda
oportuno mencionar que aquela é norma posterior à Lei Complementar nº 10.406/02 (Código
Civil).
Partilhamos do entendimento de que,
“in casu”, a antinomia de segundo
grau, o critério hierárquico deve prevalecer, na medida em que é o critério
adotado na Lei de Introdução ao Código Civil, “ex vi” do disposto no art. 2º, §1º, que assim dispõe, “verbis”:
“Art. 2º. Não se destinando à vigência
temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§1º. A lei posterior revoga a anterior
quando expressamente o declare, quando seja
com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava
a lei anterior.”(negritamos)
Com efeito, a Lei Federal nº 11.382/66
(lei complementar) ao suprimir do art. 585, inciso III, do CPC, a
expressão “e
de acidentes pessoais de que resulte morte ou incapacidade”, retirou a executividade destes contratos, revogando, de forma
tácita, o disposto no art. 27 do Decreto-lei nº 73/66, prevalecendo
o critério hierárquico sobre o da especialidade, sendo importante ressaltar
que, a solução adotada, no presente estudo, trata-se de uma interpretação feita,
pelo confronto entre os critérios hierárquico e o da especialidade, havendo, na
doutrina, entendimentos contrários, dada a peculiaridade do conflito entre
estes critérios.
[1] - Manual de Direito
Processual Civil. Vol. IV, Processo de Execução. Processo Cautelar – Parte
Geral. Saraiva: São Paulo, 1976, pg. 01.
[2] - obra citada, pg. 27.
[3] - TJMG, Apelação Cível n. 1.0145.07.411770-9/001,
Relator Desembargador José Affonso da Costa Côrtes, publicado em 02.06.2009.
[4] - O Decreto-lei nº
73/66 dispõe sobre o Sistema Nacional de Seguros Privados, regula as operações
de seguros e reseguros e dá outras providências.
[5] - Curso de Direito Processual Civil, volume 5,
Execução, 3ª Ed.., Salvador: JusPodivm, 2011 p. 186/187.
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