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terça-feira, 19 de março de 2013

DA TRANSFERÊNCIA DO DIREITO DE CONSTRUIR – NATUREZA JURÍDICA – RESTRIÇÃO URBANÍSTICA – RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE –


                                   O desenvolvimento das cidades, via de regra, é uma consequência de seu desenvolvimento econômico e, de igual modo, aquele não vem, na maioria das vezes, precedido de um adequado aproveitamento do solo, resultando em uma urbanização desordenada, com reflexos sociais e ambientais e, ironicamente, econômicos.

                                   Um dos fatores de suma importância que contribuiu sobremaneira para este cenário foi a ausência de uma normatização eficaz que conferisse aos Municípios meios efetivos de controle dos processos de parcelamento do solo urbano.

                                   Com o advento da Constituição Federal de 1988 houve uma mudança significativa no que se refere à conceituação do direito de propriedade e, uma preocupação do Poder Constituinte em estabelecer normas atinentes à política urbana.

                                   Nesse sentido, destacamos o contido no art. 5º, inciso XXIII, da CF/88, “verbis”:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

 XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;”

                                   E, adiante, o art. 182 “caput” e seus §§1º e 2º, da Carta Maior, assim preceitua, “verbis”:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes.

§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.”

                                   Da análise dos citados dispositivos legais forçoso reconhecer que o direito de propriedade está incluso no rol dos direitos e garantias individuais e coletivos. Entretanto, a este direito não se pode atribuir o caráter absoluto, intocável. Isto pois, “a propriedade não se constitui uma instituição única, como no Estado Liberal, mas sim um conjunto de várias instituições distintas, relacionadas a diversos tipos de bens."[1] (negritamos)

                                   Em sendo assim, o princípio da função social integra o direito de propriedade, não podendo ser visto como uma restrição ao sobredito direito. Em última análise aquele constitui o próprio fundamento do regime jurídico da propriedade.

                                   Norte outro, a atividade urbanística, consoante o mencionado nos dispositivos constitucionais em foco, é inerente ao Poder Público, que tem por fito o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, tais como, habitação, circulação, lazer e trabalho, dentre outras.

                                   Por sua vez, o direito de construir vem disciplinado no art. 1.299 do Código Civil, que assim preceitua, “verbis”: “O proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos.” (negritamos)

                                   Todavia, convém destacar que, este direito deve observar o planejamento urbanístico disciplinado pelo Poder Público – Plano Diretor, como mencionado no dispositivo legal acima.

                                   E, da compreensão do direito de construir surge o instituto do solo criado, também conhecido como outorga onerosa do direito de construir, que pode ser conceituado como sendo uma faculdade do proprietário de edificar em uma área horizontal (terreno) sobre ou sob o solo natural, acima de um coeficiente único de aproveitamento, fixado pelo Poder Púbico.

                                   Como já mencionado, a regulamentação do solo urbano é realizado por determinados instrumentos, dentre eles, as restrições ao exercício da atividade construtiva, mencionadas nas legislações de zoneamento, sendo certo que, o coeficiente de aproveitamento é um destes.

                                   Oportuno transcrevermos o disposto no art. 28 e seus parágrafos, da Lei nº 10.257/2001, Estatuto da Cidade, que assim dispõem, “verbis”:

Art. 28. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.

§ 1o. Para os efeitos desta Lei, coeficiente de aproveitamento é a relação entre a área edificável e a área do terreno.

§ 2o. O plano diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único para toda a zona urbana ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana.

§ 3o. O plano diretor definirá os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento, considerando a proporcionalidade entre a infra-estrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área.”(negritamos)

                                   O coeficiente de aproveitamento expressa a relação entre a área construída e a área total do terreno em que se situa a edificação. O Município, dentro de seu Plano Diretor, pode determinar a aplicação de um coeficiente único de aproveitamento, ou, índices de aproveitamento maiores ou menores, em determinadas regiões ou bairros, por motivos de urbanismo.

                                   Como visto, trata-se de verdadeira limitação administrativa imposta ao proprietário em prol do bem comum, atentando-se às necessidades urbanísticas. O doutrinador Toshio Mukai, ao lecionar sobre o tema, ensina-nos que, “verbis”: “Por essa razão, conceituamos as limitações urbanísticas como imposições, de direito público à propriedade, com caráter de generalidade, que importam obrigações de não fazer ou de fazer, e trazem, como critério legislativo, a razoabilidade, podendo, ou não, ser indenizáveis.”[2]

                                   Sendo assim, da leitura do contido no art. 28 do Estatuto da Cidade, tem-se que existe uma separação entre o direito de construir e o direito de propriedade, na medida em que o solo criado (outorga onerosa do direito de construir) é derivado desta separação.

                                   Os doutrinadores Evangelina Pinho e Fernando Guilherme Bruno Filho, sobre o tema ensinam que, “verbis”:

“Ora, o Estatuto da Cidade prevê o exercício oneroso do direito de construir acima de um determinado coeficiente de aproveitamento básico, daí se depreende que o exercício do direito de construir abaixo daquele patamar básico é de exercício não oneroso, estando compreendido na esfera do direito privado de propriedade.

Desta forma, diferentemente da Itália – onde há a separação total dos dois direitos e o exercício do direito de construir somente é possível de forma onerosa, verifica-se que, no Brasil, uma parcela do direito de construir integra o direito individual sobre a propriedade urbana, ainda que sujeito às limitações urbanísticas de parcelamento, uso e ocupação do solo impostas pela legislação municipal.”[3]

                                   Exemplificando, para melhor compreendermos, imaginemos que em uma cidade do interior mineiro o coeficiente único de aproveitamento é igual a 1 (§1º do art. 28 do Estatuto da Cidade). João de Deus é proprietário de um terreno de 250 metros quadrados, em um bairro em que o coeficiente de aproveitamento específico seja 2 (§2º do art. 28 do Estatuto da Cidade).

                                   Deste modo, considerando o coeficiente único de aproveitamento, João de Deus poderá construir – em decorrência do seu direito de propriedade – até 250 metros quadrados. Entretanto, caso queira construir além desse limite seria necessário adquirir o direito ao solo criado, estando este limitado a mais 250 metros quadrados de construção, posto que o coeficiente de aproveitamento específico do bairro é 2.

                                   Note-se que, esta aquisição poderia ocorrer de um outro proprietário cujo terreno esteja localizado em uma área de preservação ambiental, razão pela qual seu direito de construir esteja limitado.

                                   E, a este negócio jurídico, tem-se a transferência do direito de construir, que vem descrito no art. 35, incisos I a III e parágrafos 1º e 2º, do Estatuto da Cidade, com a seguinte redação, “verbis”:

Art. 35. Lei municipal, baseada no plano diretor, poderá autorizar o proprietário de imóvel urbano, privado ou público, a exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura pública, o direito de construir previsto no plano diretor ou em legislação urbanística dele decorrente, quando o referido imóvel for considerado necessário para fins de:

I – implantação de equipamentos urbanos e comunitários;

II – preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural;

III – servir a programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de interesse social.

§ 1o. A mesma faculdade poderá ser concedida ao proprietário que doar ao Poder Público seu imóvel, ou parte dele, para os fins previstos nos incisos I a III do caput.

§ 2o. A lei municipal referida no caput estabelecerá as condições relativas à aplicação da transferência do direito de construir.” (negritamos)

                                   Como visto, ao proprietário que tenha restringido o seu direito de construir, porquanto seu imóvel foi considerado necessário para preservação ambiental, inciso II do dispositivo legal em comento, será facultada a transferência de seu direito de construir para outro imóvel de sua propriedade, ou ainda, aliená-lo para terceiros, mediante escritura pública, sendo pois, uma forma de compensá-lo pela restrição imposta.

                                   Em sendo assim, a transferência do direito de construir revela-se como uma medida compensatória de política urbana, devendo, por óbvio, serem observados os coeficientes de aproveitamento tanto do imóvel que recebe, quanto do imóvel que transfere o potencial construtivo, “ex vi” do disposto no art. 28, §§ 1º e 2º, do Estatuto da Cidade.

                                   Registre-se, por fim, que a transferência do direito de construir concretiza o princípio da justa distribuição do ônus e benefícios da urbanização, porquanto a sua instituição visa, dentre outros motivos, o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, como ainda do equilíbrio ambiental.

 

 

 

 

 

 

 

                                           



[1] - Silva, José Afonso da, Direito Urbanístico Brasileiro, 2ª ed. Revisada e ampliada, São Paulo: Malheiros Editores, 1995:64.
[2] - Direito Urbano Ambiental Brasileiro. 2ª edição. Editora Dialética. São Paulo: 2002, pg. 286.
[3] - Estatuto da Cidade. Editora Mandamentos. Belo Horizonte: 2002, pg. 209.